Era noite de lua cheia, no ar uma sensação de tranquilidade,
a beira do rio, as aguas tranquilas pareciam cantar uma canção de ninar. A
menina estava nadando no rio e parecia feliz. Ele a viu do outro lado, e acenou
para ela, mas ela não o viu e continuou o seu calmo ritual de nadar e depois flutuar
na superfície. De repente, a lua escureceu e sobreveio uma terrível ventania.
Ele ficou assustado e viu um pequeno barco amarrado perto dele. Correu e o
desamarrou. Subiu no bote e dirigiu-se rapidamente até o lugar onde a moça
estava. Ela parecia não perceber do perigo, continuava nadando como se nada
tivesse acontecido.
- Ivoti, Ivoti! – gritou ele, mas a moça parecia surda. Nem
olhava para ele.
Então ele viu um redemoinho, e de dentro dele surgiu uma
enorme barca cheio de homens maus, barbados, com armas de fogo, ameaçadores. A
embarcação dirigia-se depressa ao encontro da moça. Ele sentiu a ameaça à vida
dela e gritou com toda força:
- Vá até o outro lado do rio e não olhe para trás.
Então, como por milagre, a moça olhou para ele, e olhou para
a barca ameaçadora e nadou rapidamente até a praia. Então, ela começou a correr
e não olhou para trás.
A barca, então foi engolida pelo redemoinhou e a lua da lua
voltou a brilhar e a calma retornou ao rio. A moça tinha desaparecido no
matagal.
Ele acordou suado e assustado. Percebeu que ainda era escuro.
A tribo dormia sob a luz prateada da lua cheia. Ele preparou o fogo em silencio
e trouxe algumas ervas que colocou numa panela de ferro. Lentamente a fumaça
subia até as arvores e ele entrou em transe. No meio do ritual, ouviu uma voz
que dizia que ele tinha que ir até o rio. Após isso, desmaiou e só acordou com
toda a tribo ao redor dele, na sua tenda.
O cacique, perguntou intrigado o que tinha acontecido.
- Tive um sonho premonitório, devo ir até o Moxotó e, olhando
para ele, saberei o que está acontecendo. A voz me falou e eu devo obedecer.
- Muito bem Pajé, então leva três homens com você e vá o
quanto antes.
A sabedoria e os desejos de um pajé nunca eram questionados
na tribo, nem mesmo pelo cacique.
Ao amanhecer, o pajé Jabú escolheu três índios da tribo e
partiu para o vale do Moxotó.
Chegaram ao anoitecer, e estabeleceram tendas na praia do
rio. A lua cheia brilhava com intensidade. A meia noite, ele fez a fogueira e
começou o ritual.
Na medida em que a fumaça subia começou a ver imagens no meio
dela. Percebeu que tinha que avisar “a menina do rio” que ela estava em perigo.
No dia seguinte, retornaram para a tribo.
Assim que o grupo chegou, o pajé pediu para que o índio
professor das crianças, Arandu, se apresentasse na sua tenda.
- Sim, Pajé, aqui estou – disse um índio baixinho e muito
magro. Tinha olhos curiosos e escolhia muito bem as palavras que expressava.
Era alfabetizado e ficou na escola como professor quando a menina Alma, ou
Ivoti, foi embora.
- Quero que traga um papel e lápis e escreva uma carta.
- Sim pajé.
Minutos depois, Arandu, sentado aos pés do Pajé Jabú escrevia
lentamente.
- Quero que diga para Ivoti que mora longe na terra do homem
branco, que evite todo contato com a terra de Pernambuco, ou algum lugar que
lembre esse nome. Porque o passado está perigosamente dirigindo-se até ela. Ela
não pode enfrentar o passado neste momento, não agora. Mais tarde, ela estará
preparada para enfrenta-lo, mas não agora, porque agora ela estaria despertando
dentro dela sentimentos muito perigosos que poderiam ser perigosos para sua
própria vida.
O índio-professor Arandu gostava ir uma vez ao mês até a
cidade de Arcoverde para despachar as cartas e receber as encomendas que vinha
para a tribo. Em 1950, a comunicação ainda era primitiva, mas o governo tinha
feito um censo de toda a comunidade indígena de todo o Brasil e o Ministério da
Cultura, através das prefeituras de cidades localizadas na região das tribos,
livros escolares, papelaria, jornais e junto com o Ministério da Saúde,
panfletos e manuais de prevenção de doenças. O governo Dutra fazia um bom papel
nessas regiões do Nordeste do país. O mesmo não ocorria na região norte que era
bem inacessível por via terrestre e a comunicação escassa.
Arandu ia todos os meses para o Correio e para a Prefeitura
de Arcoverde e lá recebia as encomendas tão bem apreciadas por todos. E no
Correio que o Arandu gostava de ir porque sempre chegava cartas. Geralmente os
envelopes escuros e grandes eram do Ministério, mas, as vezes chegava envelopes
grandes brancos ou amarelos com selos bonitos, letras esquisitas e um cheiro
delicioso. Arandu sabia que eram da França. A letra era do Senhor das árvores e
da jovem Ivoti. Quando ele chegava à tribo, o Pajé Jabu era o primeiro a
receber a carta da França. Arandu tinha que ler para ele primeiro, e depois
para toda a aldeia.
Durante todos esses anos, Ivoti tinha escrito muitas cartas
para Jabú. Contava como era a grande cidade, Paris, e como ela estava se
adaptando. Não deixava de contar suas impressões das pessoas e dos lugares que
conhecia. Por exemplo, contou a grande descoberta que foi a loja de Madame
Brigny e de como ela conheceu Henri e de quem estava apaixonada. Ao ouvir o
nome de Henri, pela primeira vez através das cartas, o pajé teve um estranho
pressentimento. Sabia que o relacionamento não vingaria, e quando o Senhor das
árvores escreveu contando a morte do rapaz, Jabú mandou uma mensagem à Ivoti,
mensagem que deu estímulos à moça e a ajudou a se recompor animicamente. Ela –
dizia Jabú – deveria seguir o seu destino. Seu destino já estava traçado e ela
não poderia interrompe-lo pois ainda havia coisas boas por vir.
A criação das essências e sua amizade com Paul Du Clermont
também foram contadas através de cartas. Ali, pensou Jabú, existia um futuro.
Sim, Ivoti e o rapaz que agora era seu amigo, tinham um futuro juntos, mas isso
ele não mandou dizer a ela. Decidiu guardar para si.
Por meio das fotografias, o pajé Jabú também via o quanto
Ivoti crescera e quão bonita estava. Sem dúvidas, pensou ele com satisfação, a
sua menina do rio era uma mulher elegante e muito bonita.
Ele raramente ia ao Sertão do Moxotó, e preferia buscar suas
ervas por outras regiões a uma discreta distancia de Inajá e Arcoverde. Não
gostava dessas cidades, especialmente de Inajá. Sentia que era uma cidade
amaldiçoada, com seu prefeito nefasto e sua família corrupta, responsável por
toda a tragédia que tinha ocorrido a Ivoti. Por isso, decidiu que não queria ir
mais por lá. Mas o pesadelo que tivera o obrigou a fazer o ritual perto do rio
porque era o lugar onde ele sentia mais a presença de Ivoti, o lugar que
conheceu a moça, e o que viu no ritual de fumaça não era nada agradável. Ivoti
estava prestes a se deparar com seu futuro e isso não podia acontecer agora.
Até agora, ela esteve longe das voragens do passado, mas agora essa ténue linha
entre o passado e o futuro parecia cobrir sua vida. Ele só esperava que a carta
escrita pelas mãos de Arandu, conseguisse chegar a tempo. Ele percebia que os
acontecimentos se precipitavam.