A dona do casarão manteve a dignidade e a coragem intactas. O falecido dr.Müller falecera de infarto fulminante e agora ela devia cuidar da pequena filha e sobreviver sozinha no mundo. Tinha forças e inteligência para lutar pela filha e pela memória do marido falecido. Continuou com a luta pelos direitos da mulher e criou muito bem a única filha que lhe restara. O casarão continuava a receber reuniões de mulheres e em algumas ocasiões voltava a brilhar com algum evento social. Um deles, anos após a morte do Dr. Müller, foi o noivado da sua filha Maria da Conceição – a Ceci – com o advogado Paulo de Sousa Machado, um brilhante jovem recém formado do largo São Francisco. A pequena noiva de brilhantes olhos azuis – herança do pai – estava feliz ao lado do seu noivo e futuro marido para orgulho da mãe ,dona Maria de Fátima.
O casamento de Ceci com Paulo foi um acontecimento social muito importante. Como dona Maria de Fátima insistiu muito com o novo casal, estes aceitaram morar no casarão. Paulo tinha um escritório de advocacia no centro da cidade, na Libero Badaró perto da casa paterna da dona Maria de Fátima. Ela herdara do pai,já falecido, o imóvel onde estava a padaria e ainda o alugava. A poucas quadras dali o genro da filha do seu Joaquim estabelecera o seu escritório.
A inteligente e bela Ceci fez escola de artes e chegou a pintar quadros que começaram a fazer sucesso. Ela usou a edícula do casarão como atelier e passava horas pintando quadros e mais quadros. Anos depois consagrou-se como pintora notável.
Ceci e Paulo tentavam ter filhos. Ela não conseguia engravidar. Chegou a consultar um médico – o dr.Zipolli, ex colega e amigo do seu pai – que recomendou um tratamento para engravidar. Durante anos a Ceci tentou e tentou em vão. Parecia que nunca poderia ser mãe.
Os anos trinta foram anos de convulsão social em São Paulo e no Brasil. O governo Vargas trilhava rápido pelo caminho da ditadura. O ambiente político estava fervendo. O Paulo de Sousa Machado era um dos jovens intelectuais que defendia a constitucionalidade da república e usava o casarão para reuniões políticas contra o governo federal.
Foram nos primeiros meses de 1932, que a Ceci , finalmente, ficara grávida. Enquanto o tão esperado filho estava sendo gerado, estourou a revolução de 32 e o Paulo se alistou entre as filas de jovens paulistas que enfrentaram o exército governamental.
Maria de Fátima e Ceci esperavam ansiosas noticias do Paulo que estava lutando com os seus amigos intelectuais no fronte. A inícios de julho, quando faltavam poucos dias para a rendição, chegou ao casarão a noticia de que o Paulo tinha sido atingido por uma bala no coração e morreu imediatamente sendo amparado por dois colegas do fronte. Ceci desmaiou nos braços da mãe, resistiu a gravidez e em dezembro do mesmo ano deu a luz uma filha pequenina e com olhos amendoados como o pai. Chamou a de Vitória. A menina nasceu com uma pequena marca perto da sobrancelha esquerda, herança do pai. O casarão agora era habitado por três mulheres. Três vidas, três destinos, três mistérios.
Após a morte do marido, Ceci nunca mais voltara a pintar. Recusou-se à sua arte e passou o resto dos dias cuidando da pequena filha e da mãe, agora adoentada e velha. Maria de Fátima resistiu o duro inverno de 1950 mas uma grave pneumonia a levou. A outrora e bela moçoila da Libero Badaró que encantara ao jovem Gustavo e que tinha lutado toda a sua vida pelos direitos da mulher, morreu jovem ainda, aos sessenta e cinco anos na sua cama no quarto azul do casarão que o seu falecido marido tinha construído para eles. La fora, o jardim tão bem cuidado por ela, mantinha a sua beleza e o seu primor intactos.
Após a morte de Dona Maria de Fátima, as vidas de Ceci e Vitória se resumiram em tentar sobreviver. Os imóveis do centro da cidade, herança da mãe e do marido foram vendidos e a Ceci tentava sobreviver com o que tinham. O casarão foi decaindo. O jardim da dona Maria de Fátima foi esmorecendo e a juventude de Vitória – alem dos estudos – foi cuidar da mãe que começou a adoecer.
A vila mariana dos anos sessenta transformou-se em um bairro populoso. Desapareceu o bonde e abriram-se cada vez mais ruas. As pequenas vilas de casas tomaram conta do bairro. O casarão se encontrava agora numa rua muito concorrida e importante chamada Cubatão. Tudo o que remetia ao seu passado foi se apagando lentamente.
No começo da sua juventude Vitória de Sousa Machado era uma jovem afável, sorridente e bonita. Chamava a atenção por onde ia, na escola, no colégio, e mais tarde no curso superior de professores. Vitória se formou de professora normal quando só tinha vinte e três anos no final de 1955.
Moça bonita, lembrava a avó materna, dona Maria de Fátima. Apesar de não ter a beleza da primeira, tinha uma certa elegância e postura e os seus trejeitos eram agradáveis.
Teve alguns namoradinhos, mas nada sério. A saúde da sua mãe começou a piorar e ela teve que cuidar da mãe e trabalhar numa escola pública perto do casarão onde morava.
Todos afirmavam que Vitória ficaria solteirona, pois já beirava dos trinta e nada de casório, nada de noivos, parecia que não queria casar nem ter filhos.
Por outro lado, a situação financeira da família não era das melhoras. Com o pouco que restou da sua fortuna ,dona Ceci teve que sobreviver com a filha.Vitória ajudava trabalhando mas as glorias passadas do casarão se esqueceram no meio as nevoas do tempo e das recordações.
Foi assim que na primavera de 1963 quando Vitória tinha 31 anos conheceu um jovem médico de 34 anos chamado Roberto Bellucci, recém chegado da Itália, e como o seu avô materno, também fora contratado para lecionar na universidade de medicina de São Paulo.
Roberto também atendia no hospital das clínicas quando a Vitória o conheceu. Ela acompanhou a mãe numa consulta médica e o resto foi obra do destino.
Roberto e Vitória gostavam muito de ir ao cinema. O casarão, apesar da decadência, ainda oferecia um aspecto elegante quando Vitória recebia o jovem. No verão costumavam almoçar no jardim. A sempre doente Ceci quase não os acompanhava , mas gostava muito do doutor Bellucci, um jovem alto, elegante e de conversa interessante.
Dona Ceci não resistiu ao inverno de 1964 e faleceu tranquilamente na sua cama numa noite de agosto. A jovem que ficara viúva muito cedo e que encantara o doutor Paulo e que criou a única filha com tanto sacrifício, falecera muito jovem, aos cinqüenta e três anos de idade. Vitória chamou o Roberto no meio da noite. Mas nada mais poderia ser feito.
Seis meses depois da morte da mãe, o doutor Roberto se casou com Vitória e morou com ela no casarão. Agora era a neta da dona Maria de Fátima a dona absoluta do casarão da rua Cubatão.
O sonho do novo casal, mas especialmente o sonho de Vitória era ter um filho. Desde os primeiros meses se dedicou inteiramente a esse projeto. Estava ansiosa e com muitas esperanças de ter um filho.
O tempo foi passando e nada de gravidez. Vitória se sujeitou a vários testes de gravidez, até que finalmente disseram a ela que não poderia ter filhos.
A decepção desses pais jovens foi muito forte. Vitoria passava os dias chorando no jardim que tão cuidadosamente plantar a Maria de Fátima anos atrás.
Roberto gerenciava a sua tristeza no trabalho intenso. Quase nunca ficava em casa. A Vitória tinha que se sujeitar a ausência do marido.
Quando o Roberto veio com a idéia de adotar, Vitoria foi contra. Ela queria um filho próprio dela, das entranhas dela. Não teve jeito.O casal levou uma existência solitária e triste.
Os anos se passaram, a cidade mudou, o bairro mudou. No começo dos anos setenta a Vila Mariana deixou de ser um lugar afastado e ficou muito próximo do centro e da avenida Paulista. As obras do metro mudaram completamente o rosto do lugar. O casarão persistiu, e ainda era considerado uma casa elegante.
Mas os seus atuais proprietários esqueciam de cuidá-lo como correspondia. O casarão começara desbotar e o jardim ficara cada vez mais descuidado.
Assim, um certo dia do ano 1977, o Dr. Roberto Bellucci estava na sua sala da universidade escrevendo um artigo sobre doenças coronarianas quando sentiu uma terrível dor no peito.O levaram para o Instituto do Coração e lá ficou por uma semana. Vitória esteve ao seu lado quando numa noite fria, Roberto falecera de um ataque cardíaco. Só tinha cinqüenta e um anos.
Vitória se fechou na sua dor e no casarão. Se aposentou de professora e tentava tristemente levar a vida como podia. Esperava a morte. O casarão ficou de lado, e começou a decadência.
Assim enfrentou um futuro triste e distante.
Outro dia eu passei pela rua Cubatão e vi o casarão triste e abandonado. As folhas secas sem recolher, o jardim descuidado, as paredes úmidas, testemunhas de um tempo glorioso que se passou e que jamais voltará. Tudo era triste e silencioso.
Na sacada superior vi uma mulher velha e acabada, de olhar triste. Parecia olhar o horizonte perdida nos seus pensamentos. Tinha uma pequena marca escura na sobrancelha esquerda, herança do pai.
Apesar de parecer velho e doente, o casarão da rua Cubatão ainda tinha vida.
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