O VELHO DO PARQUE
TRIANON
De vez em quando costumo ir ao parque Trianon. Aquele que se
encontra no coração da Avenida Paulista, aquele que tem mata atlântica
conservada no meio da floresta urbana, aquele em podemos desfrutar, mesmo que
por algum momento, do silencio e do frescor em meio à confusão que é a avenida
cosmopolita.
Numa certa manhã de segunda feira, quando o calor escaldante
de janeiro me obrigou a entrar no parque, comecei a andar pelas trilhas calmas
que me tranquilizaram imediatamente. Havia muita gente. Crianças brincando num
pequeno parquinho, bem no meio da mata, senhoras conversando em pequenos bancos
de madeira, jovens apaixonados se beijando em algum canto oculto entre as
matas, em fim, uma mistura de vida e de urbanismo, de civilidade e de
entretenimento.
Pois bem, quando por fim encontrei um lugar para sentar.
Fechei os olhos e respirei o ar puro que vinha das árvores. Ao longe o canto de
passarinhos, me fez lembrar da vida do campo. Tudo parecia tão tranquilo, tão
distante, tão feérico.
Quando abri os olhos percebi que alguém sentava ao meu lado.
Um homem idoso, muito idoso, parecia cansado e olhava as árvores com assombro.
O rosto cheio de marcas do passado, não saberia dizer que tipo de passado, o
corpo encurvado, talvez pelos anos de solidão e de sofrimento, talvez por um
passado de trabalho pesado, talvez, talvez....De repente o homem olhou para
mim. Vi nos seus olhos a marca da tristeza, da saudade, do abandono. Porém,
estava bem vestido, e me chamou a atenção a sua bengala, que parecia de marfim.
- Bom dia meu jovem – disse tentando sorrir
- Bom dia, senhor – respondi algo intrigado – lindo dia, não?
- Sim, de fato é um lindo dia. La fora é tudo cacofonia, tudo
muito barulhento, tudo é uma confusão, como a vida em que vivemos, mas
aqui...aqui dentro tudo é paz – disse olhando a mata.
- Deveria vir mais aqui. Confesso que passo pelo parque quase
todos os dias e poucas vezes costumo entrar. Deveria entrar mais vezes e
desfrutar deste pequeno paraíso no meio da cidade.
- Eu venho todos os dias, sempre, no mesmo horário. É o que
se espera de um aposentado, sozinho, como eu, não é?
Olhei para ele intrigado.
- Bem, imagino que para um aposentado, os dias devem passar
lentamente!
- Não tão lentamente como gostaria – disse com um suspiro –
Às vezes passa tão rápido que quando percebemos estamos velhos e sozinhos.
Quando era jovem, meu jovem, nunca
pensei que chegaria a minha idade tão avançada. A velhice deveria ser mais
compartilhada, sabe, acho que chegar a uma certa idade e sozinho, é muito pior.
- O senhor não tem família?
- Não, estou completamente só no mundo. Minha mulher faleceu,
minha única filha também. Ela nunca casou e não me deu netos.
Nesse momento, percebi um sotaque, algo muito diluído, mas um
sotaque estrangeiro.
- Desculpe perguntar, mas, o senhor é brasileiro?
- Sou brasileiro de coração, de adoção. Mas nasci na Polônia
e cheguei ao Brasil bem adulto, aos trinta e cinco anos, após a Segunda Guerra.
- Impressionante!. O senhor lutou na guerra?
- Não, fui prisioneiro de guerra. Estive num campo de
concentração, em Auschwitz, ouviu falar?
Ao mencionar essa palavra dilacerante, meu coração estremeceu
e um instantâneo sentimento de caridade e humanidade tomou conta de mim, mas
tentei não demonstra-lo.
- Sim, ouvi falar sim. É arrepiante. Sinto muito.
- Não precisa sentir meu jovem – disse o velho sorrindo – a
sua geração nem este país tem culpa de nada. Na verdade, até hoje procuro saber
quem é realmente culpado, ou se existe algum culpado.
- Sim, imagino que é fácil culpar os alemães, mas certamente
os nazistas são responsáveis por esse holocausto. Me desculpa,..... senhor?
- Abraão, Moisés Abraão, seu servidor.
- João Carlos Silveira, prazer em conhecê-lo Senhor Abraão.
- O prazer é meu. Normalmente eu não costumo falar de mim,
mas senti que o jovem pareceu interessado na vida deste velho inexpressivo.
- Inexpressivo? Não, nenhum ser humano é inexpressivo. Todos
temos uma história de vida que contar, especialmente um idoso, sempre tem. Mas,
então, o senhor não tem nenhum parente aqui na cidade?
- Nem na cidade, nem no país. Tenho alguns primos que moram
nos Estados Unidos. Alguns anos atrás, quando a minha mulher, Sarah, morreu,
eles me mandaram cartas, insistindo para ir morar lá com eles. Mas não aceitei.
Gostava do meu trabalho. Tive uma Alfaiataria no Bom Retiro. Fiz muito terno
para os meus patrícios e também para outros. Gostava de confeccionar ternos.
Nesse instante, percebi que estava usando um terno muito
elegante, um tanto velho, mas elegante.
- Sim, gostei do seu terno. Foi o senhor que fez?
- Sim, está muito velho. Este é da minha coleção dos anos
setenta.
- Quantos anos o senhor trabalhou como alfaiate?
- Por cinquenta anos. Desde que cheguei ao Brasil em
1947. Aposentei em 2001.
- Muito tempo mesmo. Por que quis ser alfaiate?
- Antes da guerra, eu era arquiteto, mas quando cheguei ao
Brasil não tinha como comprovar os meus estudos, meus diplomas e certificados,
documentos e papeladas desapareceram durante a guerra, então, o primeiro
emprego que consegui, foi numa alfaiataria de outro judeu no Bom Retiro. Ali
aprendi o novo oficio. No começo achava estranho, mas depois fui acostumando e
terminei apaixonado pela alfaiataria.
- Impressionante. E foi aqui que conheceu a sua esposa?
- Sim, ela chegou ao Brasil pouco depois de mim. Eu a conheci
aqui, sim. Casamos em 1950 e tivemos dois filhos. O mais velho era um menino
que morreu dias após de nascer; a menina Miriam, nasceu em 1954 e morreu aos
quinze anos de difteria.
- Sinto muito. Imagino a dor que deve ter passado.
- Não meu jovem, quando se é sobrevivente de um campo de
concentração, acaba não sentindo mais dor, a dor se transforma em humilhação,
uma humilhação de vida. Mas, o homem nasceu para viver, e a vida também é
sofrimento e humilhação.
- Sim, também acho isso. – Olhei para ele e disse quase
sorrindo - O senhor é um sobrevivente da vida, o senhor é um ser humano forte
como o aço. Com tudo que passou, ainda está de pé e isso é incrível.
- Ainda não entendi de onde tirei forças, mas consegui
reuni-las na minha vida, consegui me fortalecer de algum jeito que não sei. Mas
consegui.
- Senhor Abraão, me desculpe, mas, quantos anos o senhor tem?
- Noventa e nove. Farei cem no próximo 1 de maio.
- Noventa e nove!!! – disse impressionado – Meu Deus, o
senhor é um exemplo de vida.
- Não sou exemplo de nada meu jovem. Cada um nasce e vive a
vida como deve ser. Alguns tem sorte de morrer jovem como os meus filhos,
outros morreram de sofrimento em Auschwitz, e a mim, tocou viver o máximo
possível, e só Deus sabe a razão, o por que disso tudo.
- Senhor Abraão....Posso lhe pedir um favor?
- Sim, meu jovem, fale..
- Posso, de vez em quando, vir até aqui conversar com o
senhor?
- Claro, mas, por que?
- Porque o senhor é um exemplo de vida. A sua historia
pessoal é um exemplo a seguir, um exemplo de sobrevivência, porque o senhor faz
com que eu aumente a minha esperança na vida, e isso estimula a minha
humanidade.
- Mas claro meu jovem, mas eu não sou exemplo de nada. A sua
juventude deveria bastar, não acha?
- Não acho, Seu Abraão, a minha juventude é só um trampolim
para que eu possa arriscar, mas ela não me dá a certeza de como hei de
enfrentar a vida. A sua historia me ajuda muito a enxergar coisas que até agora
eu não enxergava. Obrigado por isso.
- Não deve agradecer meu jovem. Temos que ser fortes, até o
fim.
Depois dessa despedida, voltei varias vezes ao Trianon e
nunca mais revi o Seu Abraão. Talvez conseguiu chegar aos cem anos, talvez
morreu antes; talvez, talvez.
Nunca esquecerei esse singular encontro com o velho do Parque
Trianon.
F I M