AMIZADE VERDADEIRA
Aconteceu numa noite quente de verão escaldante. Gastão
Camargo era um recruta da V Divisão da Infantaria do Regimento Militar,
afincado em Sorocaba, interior de São Paulo. Gastão nunca quis ir servir o
exército, talvez por discordar do regime militar imperante no País desde 1964.
Pois é, agora, o próprio regime estava em declínio (já estamos no verão de
1981-82) e dois anos depois, o Brasil entraria numa convulsão popular pelas
Diretas Já.
Às instalações do Quartel General ficavam fora da cidade, uns
cinco quilômetros para ser exato. Gastão era de Santa Cruz do Rio Pardo, filho
de um agricultor e de uma costureira de mão cheia. Pertencia a uma família
simples, mas com boa instrução. Ao completar os dezoito anos, o pai insistira
muito para que ele entrasse no exército. O jovem, para agradar o pai, aceitou.
Em Janeiro, em pleno verão, o interior de São Paulo é um
inferno de calor. Às vezes não se consegue dormir nem com ventilador. Às
madrugadas são quentes e a temperatura pode chegar a 26 graus; durante o dia
passa dos 35.
Mas, logo que se apresentou, o nosso jovem personagem gostou
do lugar, assim como dos colegas recrutas. O treino era muito puxado. Começavam
às sete da manhã até às seis da tarde. Depois do jantar, todos iam para cama.
Não tinha TV, nem salão de jogos. Alguns recrutas gostavam de ler revistas
picantes de mulheres peladas, como é natural nessa idade. Gastão gostava de ler
livros instrutivos. Na escola ele destacara-se por saber escrever muito bem,
isso porque devorava livros. Nesse verão, estava lendo “Memórias de Adriano” de
Marguerite Yourcenar. Estava adorando.
Após um mês de treinamento pesado, em meados de fevereiro,
saiu à lista de guardas que todos tinham de fazer durante esse período. Fazer
guarda era ficar doze horas em pé durante o dia em um local específico do
quartel, ou ficar seis horas durante o período noturno. Gastão fora designado
para ficar enfrente à casa do Comandante Geral da V Divisão de Infantaria do
Exército.
A casa do General José de Andrade Cruz, ficava no lugar mais
alto do quartel. Para chegar até ela, se atravessava um terreno de árvores e
moita, limite da área de treinamento dos soldados. Ela estava localizada numa
pequena colina desde onde podia apreciar-se todos os prédios da Divisão.
A casa era pequena, porem charmosa. Tinha uma pequena varanda
na frente e um pequeno jardim atrás. Pintada de branco, a casa parecia de
contos de fadas vista de longe. De perto tinha a elegância de um pequeno chalé
de campo.
O comandante era durão e intransigente. De vez em quando ele
estava presente nos treinamentos, e a sua mera presença bastava para que aquele
dia, os exercícios fossem mais extenuantes do que o normal.
A voz de trovão com que emitia as ordens fazia tremer a
todos, desde os tenentes até os soldados comuns, ou seja, os recrutas.
O Comandante tinha dois filhos: uma filha e um filho. Gastão
tinha visto o casal uma vez só, ao longe. A menina devia ter uns quinze anos, o
filho, uns dezessete ou dezoito, ou seja, a mesma idade do nosso protagonista.
Então, na noite em que Gastão tinha que fazer a guarda
perante a casa do comandante, o calor foi terrível. É fácil imaginar o incomodo
que se sente ao estar de pé durante horas com o uniforme pesado do exercito,
aguentando um calor noturno desses.
Gastão começou seu plantão de guarda às seis da tarde, quando
o sol de verão ainda queimava. Suava gotas generosas de cansaço e de tédio. Não
podia beber nada, nem sequer água, e muito menos comer. Quando deram às dez da
noite, a casa estava vazia. Nem o comandante, nem sua mulher estavam. Mas uma
luz que vinha da janela do quarto indicava que um dos filhos estava presente.
Meia hora depois, Gastão quase desmaiou de calor. Estava
sedento. Imaginava água fresca e sucos de frutas. Sua mente estava nublada.
Tudo parecia desabar dentro dele quando uma voz o trouxe de volta para a
realidade:
- Olá, tudo bem? – disse um adolescente simpático, com um
sorriso ingênuo e muito acima do peso.
- Olá – disse Gastão um tanto surpreso- tudo bem, e você?
- Ótimo. Estava olhando pela janela e imaginei que talvez
você queira beber alguma coisa fresca. Quer água gelada?
Gastão não podia acreditar na bondade desse garoto, e disse
rapidamente:
- Sim, por favor. Estou morrendo de sede.
O rapaz entrou correndo na casa e, minutos depois, voltou com
uma jarra de água. Ele mesmo serviu o Gastão, que agradecido, retribuiu com um
sorriso de satisfação,
- Obrigado. Meu nome é Gastão
- Eu sou Carlos, prazer. Deve ser entediante ficar aqui
parado tanto tempo, especialmente com este calor.
- Sim, muito. E obrigado novamente pela água. Estava morrendo
de sede. Você me salvou!
- Imagina. Não foi nada, simplesmente uma água.
- Espero poder retribuir este favor, algum dia.
- Não se preocupe – disse o filho do Comandante e voltou para
casa.
O tempo foi passando, os dias viraram meses e os meses anos;
às estações passaram e Gastão terminou o serviço militar e foi estudar a
faculdade em São Paulo, capital.
Muitos anos depois de se formar em Direito, ele morava num pequeno e aconchegante
apartamento. Trabalhava na Avenida Paulista, num escritório jurídico e fez
muitas amizades.
Chegou então o seu aniversário e um dos convidados, muito
amigo dele, apareceu acompanhado de outro rapaz, da mesma idade deles. O rapaz
era muito simpático e logo que Gastão o conheceu, gostou dele. De papo
interessante e muito agradável, eles ficaram muito amigos. Pouco depois, Gastão
foi convidado para jantar na casa do novo amigo.
Assim que ele entrou na casa, viu uma fotografia dos pais
dele. O pai, trajado em galas militares era nada mais, nada menos, que o
Comandante da V Infantaria do Exército, o General (agora aposentado) José de
Andrade Cruz.
Carlos Cruz, o novo amigo de Gastão era o mesmo que lhe
oferecera um copo de água fresca naquela noite quente de verão. Gastão perguntou ao amigo se ele
se lembrava do episodio, mas ele falou que não.
A amizade tinha começado muito tempo atrás, com uma jarra de
água fresca.
Meditando sobre o assunto, Gastão lembrou de uma frase que
tinha lido em algum lugar sobre a amizade verdadeira: “A amizade é um
relacionamento perfeito, mas nossa humanidade ainda não sabe disso, pois,
convencida de que todo relacionamento há de ter algum interesse envolvido,
deixa de lado a preciosidade da entrega amorosa”.
F I M
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