sábado, 31 de maio de 2014

PEQUENO DICIONÁRIO ÍNTIMO



 

PALAVRAS

O que são as palavras senão um acumulo de sensações, angustias, gritos, alegrias, emoções, pedras duras, escudos contra nós mesmos; suspiros da alma traduzidas em harmonia, em lamentos, em ardores, em sabores, em vida?.
Para Clarice Lispector as palavras iam além da sua obra literária, elas transpiravam humanidade, transpiravam vida.

ALMA, A FILHA DO DESTINO (CAP.IV PARTE V)



Recife amanheceu com um sol radiante. Nas praias, os banhistas aproveitavam a primavera quente e agradável. Alguns barcos de pescadores viam-se ao longe e o sol matutino era simplesmente inspirador. Monsieur Dupont e seus colegas atravessaram o parque central, caminharam uns metros pela prefeitura da cidade e entraram na rua Guararapes. Viram um pequeno edifício velho de três andares. Na porta, uma inscrição: “Antônio Albuquerque e Associados, Escritório de Advocacia”.
Uma morena voluptuosa os recebeu com um sorriso. Esperaram uns dez minutos numa salinha pequena e abafada e depois entraram num escritório cheio de livros, pastas espalhadas por todo o lado e no centro da escrivaninha um homem de meia idade, de calvície acentuada, e sorriso desconfiado. Arrumou o escritório, e Dupont viu umas baratas no meio de pratos sujos misturados com pastas de papeis amarelados e velhos.
- Bem, Senhor...?
- Dupont, Gerard Dupont. Prazer
- Senhor Dupont...Bem, em que posso lhe servir.
- Doutor Albuquerque, gostaria de lhe consultar sobre...adoção
- Sim.... - disse o advogado ascendendo um cigarro.
- Quál é a possibilidade legal de adotar uma menina sem documentos, sem saber de onde veio, encontrada na mata pelos índios Tuxá, de quase dezoito anos.
O advogado olhou de forma curiosa para o biólogo e sorriu maliciosamente.
- Bem, por que não fazer a coisa mais fácil. Se ela tem quase dezoito, por que não casar com ela?
- O senhor não me entendeu. Eu quero adota-la, como filha e leva-la para Europa.
- Ah, entendi. Bem, deveria coletar informações sobre ela. Tem algum dado, alguma pista de onde ela veio?
Dupont ficou em silencio uns segundos e olhando nos olhos do advogado disse sem hesitar:
- Não, infelizmente não...Mas, me diga. No caso de que não encontremos nada sobre o passado dela, já que a menina perdeu a memória ou algo assim, seria fácil a adoção?
- Fácil não digo, mas...vai custar um bom dinheiro. Mas acho que é possível sim. Terei que por em funcionamento os meus contatos no cartório, polícia e secretaria da justiça.
- Muito bem – disse Dupont – então o que faremos no primeiro momento?
- O senhor disse que não sabe o nome verdadeiro dela?
- Sim, na tribo é chamada de Ivoti, é só isso que sabemos dela.
- Bem, vou trabalhar no caso, onde posso contata-lo?
- Estou no Hotel Beira-Mar. Poderá me encontrar lá.
-  Ótimo. Em dois dias uteis terei notícias.
- Estarei aguardando.
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segunda-feira, 26 de maio de 2014

CORAGEM


O que é a coragem, senão a capacidade de exercer a verdadeira LIBERDADE?

Li ou escutei em algum lugar alguém dizer que tem CORAGEM aquele que vive a vida com a total liberdade de ser o que quer ser, e estar onde quer estar, sem preocupar-se com a opinião dos outros, sem deter-se aos medos do cotidiano e, sem ter medo de ter opinião, de pensar diferente, de sentir diferente.
Vivemos numa época cinzenta onde tudo que parece ser, não é, é o que pensamos que não é, é. Olhamos o mundo com a visão de quem navega pela internet, que se comunica com o melhor aparelho tecnológico e que vê o culto da religião, os valores tradicionais, a família e as relações humanas num limitado contexto de rede social.
Como? Você não tem facebook, nem twitter, nem email?; não tem celular?, não posta fotos pelo Instagran?; nunca ouviu falar em Linkedin?; você não tem carro? Você anda de bicicleta?; você lê poesias e livros clássicos?, e ainda por cima se veste como quer?. Quem é você?: um marciano?. Meu Deus: Você é alternativo!!!
Alternativo, na nossa época quer dizer “diferente”, quer dizer “estranho”, quer dizer “louco de pedra”. Alternativo não é nada disso, é simplesmente o ser humano que tem coragem, que é corajoso. É tudo isso, simplesmente isso.
Acabei de assistir um filme sobre como o acaso, ou o destino, pode nos oferecer escolhas na nossa vida. Um pacato professor, de vida chata e desinteressante, salva a vida de uma moça prestes a cometer suicídio. Sem querer, ele fica com o casaco dela e no bolso tinha um livro. Esse livro leva o personagem para outro país e a descobrir histórias de vida que mudaram a sua própria vida. Através do livro, o professor teve a coragem de ir atrás daquilo que considerou importante.
Quantas vezes cai um “livro” nas nossas mãos e não temos essa coragem de nos deixar transformar por ele. Quantas vezes a vida nos oferece caminhos desconhecidos mas falta a coragem de segui-los.
Quantas vezes acordamos antes do sol e colocamos dentro da mente que hoje teremos a coragem para mudar a nossa vida, mudar aquilo que não gostamos, aquilo que queremos esquecer.
Sim, viver é um ato de coragem; sobreviver, não. Vivemos quando temos a coragem de exercer a nossa liberdade plena de seres humanos. Quando transformamos o que devemos transformar, quando mudamos o que não nos agrada, quando iluminamos nossa vida com a luz da esperança porque a escuridão é demasiado desconfortante. Sobrevivemos quando “deixamos” que a vida nos leve por caminhos que não gostamos, e não temos coragem para dizer “não” quando é preciso.
Isso é sobreviver, isso é “não viver”.

Não é irônico que, no século XXI, século de liberdade que vivemos, nos falte a coragem para ser livres? Cabe a nós, só a nós, ter a coragem de mudar se a mudança é imperativa para sermos nós mesmos. Só assim conseguiremos ser realmente felizes.

sábado, 17 de maio de 2014

ALBERTO (CONTO)



Alberto era um menino tranquilo e todos o consideravam um anjo. Na escola era o coleguinha mais querido da turma, em casa, por ser o filho mais velho, era sempre o que cumpria todos os afazeres que os pais lhe ordenavam. O pequeno Alberto era, sem dúvidas, um menino modelo.
O menino era magrinho, baixinho, de enormes olhos escuros e um sorriso bonito. Sempre obediente e brincalhão. Adorado pela família, era considerado um camarada do bem pelos coleguinhas de escola.
Uma quarta feira de outono, Alberto acordou bem cedo para ir à escola. Vestiu-se rapidamente, tomou o café da manhã, beijou a mãe e caminhou dois quarteirões até a escola pública onde estudava o terceiro ano do primário.
O céu estava azul, era o azul de outono, a brisa fresca e suave lhe beijava o rosto. Alberto chegou ao grande portão de entrada e conversou com alguns colegas de aula. Por um momento, só por um momento teve uma estranha impressão. Um arrepio tomou conta do seu peito, não sabia por que e o que seria. Só sentiu. De repente, fechou os olhos e por um segundo veio à sua mente toda a sua curta vida. Tinha só oito anos, e sempre pensou na brevidade da vida.
As imagens do passado afluíram na sua mente. Lembrou-se da vovó Maria e os seus doces de chocolate, do irmão bebê que hoje tinha dois anos; lembrou do primeiro dia de aula no pré primário e que parecia ter acontecido há muitos anos, lembrou, em fim de todos os seus aniversários e de suas férias na praia com a sua família.
A praia. A última vez que esteve na praia foi no ultimo verão. O céu límpido e cristalino, as ondas brancas beijavam a praia, e ele se viu nadando na beira do mar com o seu pai e seu pequeno irmão Zezinho. Sentiu o aroma salino da água e quase tinha esquecido o canto das gaivotas. Aquele dia foi memorável e ele nunca esqueceu. Imaginou o céu como uma grande praia de céu azul e ondas brancas. Imaginou sereias e peixes amigáveis que vinham até a superfície para nadar com os banhistas. Nunca esqueceu essa sensação de liberdade.
A liberdade era para o pequeno Alberto um sonho profundo de alegria, de não pensar nas tarefas da escola, de não ter que ajudar em casa, de ficar sem fazer nada, somente fechar os olhos numa praia deserta e ouvir o barulho do mar e o canto das gaivotas. A liberdade plena era aquele estado em que ele se sentia leve e imensamente feliz.

Essa quarta feira não era um dia normal, parecia ser, mas não era. Alberto, ao acordar ouviu uma gralha cantando bem perto da janela do quarto. Nunca ouvira cantar uma gralha. Ficara assustado e encantado ao mesmo tempo.
Susto e encantamento podem provocar uma sensação maravilhosa de estado de graça, mas também podem provocar medo, talvez um medo ao desconhecido, medo do que possa acontecer, a nos mesmos ou aos outros. Será que a gralha cantava por causa do avô doente?, pensou, enquanto vestia o uniforme para ir a escola.
De qualquer forma, continuou a sua rotina infantil de sempre. O irmãozinho tomando mamadeira nos braços da mãe quando ele descera para o café. Após se servir café com leite, pão e manteiga, mel e suco de frutas, Alberto beijou a mãe e foi para a escola que ficava umas quadras de casa.
Ao atravessar a avenida, levou um susto. Um carro desgovernado (talvez perdeu a direção) quase o atropelou. Ele esquivou-se por pouco, e o carro bateu numa arvore a escassos metros dele. Alberto atravessou a avenida e foi para a escola com a sensação de que escapara por pouco. Primeiro a gralha cantando pensou, agora o acidente. Bem, espero que o dia melhore.
E pareceu melhorar. Essa quarta-feira de finais de março fora muito especial. Na hora do recreio, brincou com o seu melhor amigo, o Dudú. Brincar com Dudú era um prazer na escola. No recreio, os dois meninos costumavam subir algumas arvores perto do campo de futebol onde aconteciam as aulas de ginástica. Também brincavam de esconde-esconde por trás das grandes colunas do auditório. Uma vez eles se perderam no porão do teatro infantil e foi difícil achar a saída, mas o episodio foi celebrado pelos dois com muita gargalhada. Alberto não esqueceu o dia em que caiu de umas das arvores e quebrou o braço esquerdo. Isso foi no ano passado. Dudú ficou com ele no hospital. As mães dos meninos eram amigas intimas, e as duas famílias moravam perto uma da outra. Nos aniversários infantis das crianças eles se ajudavam nos preparativos. Dudú fazia aniversário no inicio de março e Alberto no final de outubro.
Pois bem, nessa quarta-feira, Dudú notou algo estranho no rosto do amigo. Ele estava distante e um pouco pálido, parecia preocupado. Quando Alberto contou o episodio da gralha e do acidente na rua que vira ao vir para a escola, Dudú deu uma risada e disse que isso acontecia quase sempre. O fato é que Alberto parecia não poder esquecer esses fatos.
Chegou a hora da saída. Alberto e Dudú foram para casa juntos. Despediram-se como sempre.
No período da tarde, a mãe de Alberto se preparou para ir a Missa. Tinha combinado com sua mãe, a vovó Maria, de irem juntas rezar pela saúde do pai, o vovô Luis. Ela saiu às quatro e meia buscar a mãe. A igreja era perto.
O pequeno Alberto acabara de fazer a lição da escola exatamente às quatro e quarenta e cinco. Lembrou que tinha que ir até a loja do pai, do outro lado da rua, e depois de ver se o irmãozinho estava dormindo, avisou a empregada que sairia para falar com o pai e voltaria logo. A empregada só limitou-se a dizer para tomar cuidado ao atravessar a rua, já que nessa hora o transito era terrível. Alberto olhou para ela e sorriu para depois abrir o portão e desaparecer em direção à avenida.
Às quatro e cinquenta e cinco, Alberto esperou o sinal abrir para atravessar a avenida. Como já dissera a empregada o trafego era pesado. Poucos segundos antes de abrir o sinal, pareceu ouvir a voz do seu amiguinho Dudú falando alguma coisa sobre ir ao circo no final de semana. Alberto virou a cabeça tentando ver o Dudú em algum lugar da rua, mas sem sucesso, parecia estar em algum outro lugar, um parque, um jardim, ou simplesmente brincando com o amigo. Nesse momento, percebeu que já estava no meio da avenida e uma caminhonete apareceu diante dele. Depois um grito e tudo ficou escuro.
Os acontecimentos que se sucederam nesse momento foram rápidos como a vida mesma. Dudú estava tomando café com os irmãos quando viu a mãe chegar com o rosto pálido e assustado. Ela disse que ouviu alguma noticia ruim e precisava se trocar. Dudú não entendeu nada. Minutos depois, viu a mãe sair depressa e falou para ele ficar com os irmãos e não ligar a TV nem a radio. Era um mal sinal.
A Missa acabou as cinco e quarenta e cinco, quando na porta da Igreja, o tio de Alberto apareceu para buscar a irmã e a mãe. As duas desmaiaram ao saber da noticia. O pai de Alberto ouviu o estrondo e saiu correndo da loja para ver um menino estendido no chão, coberto de sangue. Sem saber que era seu filho, correu para prestar socorro e o mundo desabou ao perceber que se tratava do seu menino.
Quando a mãe do Dudú voltou com o pai às oito da noite, conversaram com ele e contaram que o pequeno Alberto tinha morrido em acidente ao tentar atravessar a avenida. Dudú olhou o relógio. Eram as vinte e cinco dessa quarta-feira. O menino não disse nada, simplesmente entrou no seu quarto e apagou a luz. Ficou na escuridão. Fechou os olhos e viu-se no quintal da escola brincando com Alberto. E como Alberto estava feliz correndo e trepando as arvores mais altas!. Por um momento, Dudú também sorriu. Amanha seria outro dia, pensou ele. E, isto é só um pesadelo. Alberto vai estar amanhã na escola.
Mas o amanhã chegou e na escola, a Professora Beth entrou na classe e avisou a todos que o “nosso colega Alberto” havia falecido e que todos iríamos ao velório daqui a pouco. Dudú fechou os olhos novamente. O pesadelo não acabara; só começara.
Pela primeira vez, Dudú experimentou o terrível sentimento de perder um ser querido.
F    I   M